Vida e Seca no Sertão

A geografia do sertão nordestino através da obra de José de Alencar


No ano de 1875, José de Alencar publicou seu último romance, o livro O Sertanejo, e apesar de não ter tido tempo de aprofundar nessa proposta de descrever o sertão e o sertanejo em outros romances, com esta obra ele encerrou um ciclo proposto de apresentar o Brasil nas suas diversas regionalidades, enaltecendo assim os costumes e tradições do povo brasileiro na tentativa de criar uma identidade nacional própria, mesmo se esbarrando em uma nação recém-independente com uma ainda pequena identidade social e histórica.

Na época em que Alencar escrevia a obra O Sertanejo o Brasil atravessava por inúmeras convulsões sociais, politicas e econômicas, além de ser ainda um dos últimos lugares do mundo onde a escravidão não havia sido abolida, e todo esse contexto em que o autor estava inserido refletem em também em seu romance, que apesar de ter regredido um século atrás a estória, ele praticamente exclui a escravidão e os negros de sua obra, deixando apenas breves referencias desses fatos, porém é entendido também que nas atividades de pecuária, que são as retratadas no romance, a escravidão foi menos empregada e dependente da escravidão quando comparado com as fazendas de lavoura, que na no século XVIII e ainda no XIX dependiam completamente do trabalho escravo.

Alguns críticos das obras de Alencar, e principalmente no que se refere a esta obra, considera-a superficial e imprecisa pelo fato de Alencar não ter percorrido os lugares adentro do sertão, estando apenas nos arredores das localidades urbanas do Ceará, comprometendo assim todas as descrições do sertão, onde diziam tudo ser apenas fruto de sua imaginação das quais muitas das cenas descritas seriam impossíveis na realidade.

Todavia, a literatura não tem a obrigação de servir de forma verossímil a períodos e detalhes históricos dos fatos, e ainda, a intenção de Alencar não era apenas imitar a realidade, mas, de transpor do real para o ideal (Alencar, 1865), naquilo que de acordo com sua visão, ideologia e raciocínio ele tinha como ideal ao Brasil. No que podemos notar claramente quando a construção de seus personagens heroicos, porem subservientes aos patrões e suas famílias, sem delegar um peso nessa tarefa e sim um prazer do personagem em cumprir esse papel.

Ainda assim, a forma épica e quase poética em que Alencar descreve com tão ricos detalhes o sertanejo e o sertão, esse do qual iremos abordar com mais ênfase nesse texto, é um instrumento riquíssimo e também praticamente inaugural na literatura brasileira no que se refere a construção da imagem desse povo e local.

A geografia do sertão apresentada na obra refere-se a um período em que o Brasil era ainda colônia de Portugal, portanto mais de 200 anos atrás, nessa época o Brasil era completamente fechado ao comércio mundial, sendo seus portos abertos apenas a navios portugueses. As atividades industriais não eram permitidas, e tudo aquilo que projetasse uma evolução colocando os interesses de Portugal sobre risco de perder o controle da colônia eram proibidos. Dessa forma, era de interesse de Portugal que o Brasil continuasse arcaico, analfabeto e com uma cultura e identidade própria limitada.

A população brasileira concentrava-se praticamente no litoral, com exceção das localidades adentro do país onde já havia iniciado a exploração do ouro. O sertão nordestino aonde já se desenvolvia a pecuária, era um lugar praticamente desabitado, “quando apenas se encontravam de longe em longe extensas fazendas, as quais ocupavam todo o espaço entre as raras freguesias espalhadas pelo interior da província.”

Ao longo de seu romance José de Alencar vai descrevendo a vegetação, a fauna e o solo de forma ímpar, passando desde os tempos de seca onde a ”vida abandona a terra, e toda essa região que se estende por centenas de léguas não é mais de que o vasto jazigo de uma natureza extinta e o sepulcro da própria criação.”, até quando se chega a primavera, a vida torna a florescer e a “transição se opera com tal energia que assemelhava-se de certo modo à mutação.”

O sertão durante a seca ocasionada pelos longos períodos sem chuva que acaba por acarretar também a elevação da temperatura no ambiente transforma todo o solo num lugar praticamente desértico, onde “o sol ardentíssimo côa através do mormaço da terra abrasada uns raios baços que vestem de mortalha lívida e poenta os esqueletos das árvores, enfileirados uns após outros como uma lúgubre procissão de mortos.”, “dir-se-ia que por aí passou o fogo e consumiu toda a verdura, que é o sorriso dos campos e a gala das árvores”, e Alencar na tentativa de descrever melhor aquele lugar e ser ainda mais perceptível e inteligível narra no romance qual seria a sensação de alguém que experimentasse aquele ambiente pela primeira vez: “Quem pela primeira vez percorre o sertão nessa quadra, depois de longa seca, sente confranger-se lhe a alma até os últimos refolhos em face dessa inanição da vida, desse imenso holocausto da terra. [...] mais fúnebre do que um cemitério.”

Durante todo esse período de seca, onde a vegetação viva praticamente desaparece, as aves também somem dali, como descreve Alencar nesse trecho: “Estes ares em outra época povoados dos turbilhões de pássaros loquazes, cuja brilhante plumagem rutilava aos raios do sol, agora ermos e mudos como a terra, são apenas cortados pelo voo pesado dos urubus que farejam a carniça” ficando apenas o sertanejo, alguns animais e uma raríssima e resistente vegetação nas várzeas, “onde se conserva algum vislumbre da vitalidade, que parece haver de todo abandonado a terra. Aí se encontram, semeadas pelo campo, touceiras erriçadas de puas e espinhos em que se entrelaçam os cardos e as carnaúbas. Sempre verdes, ainda quando não cai do céu uma só gota de orvalho, estas plantas simbolizam no sertão as duas virtudes cearenses, a sobriedade e a perseverança.”

Essa sobriedade e perseverança é que moldam o sertanejo, os animais e as vegetações que ali vivem juntos e precisa atravessar aquele longo período de estiagem em suas terras. José de Alencar constrói a imagem do sertanejo em sua obra, colocando-o como uma pessoa completamente indissociável daquele ambiente, ao quais as dificuldades impostas á eles os tornam tão próximos, que cada vida resistente ali ganha um valor incompreensível para os que ali não vivem: "O homem da cidade não compreende esse hábito silvestre. Para ele a mata é uma continuação de árvores, [...] Para o sertanejo a floresta é um mundo, e cada árvore um amigo ou um conhecido a quem saúda passando. A seu olhar perspicaz as clareiras, as brenhas, as coroas de mato, distinguem-se melhor do que as praças e ruas com seus letreiros e números."

Dessa forma pode-se dizer que assim como o fogo e o martelo forjam uma espada, o sertanejo é forjado pela seca e pela vida do sertão. Ali ele tem de aprender a se adaptar e moldar sobre as completamente distintas formas de se viver naquele lugar inóspito durante longos períodos do ano.

Tão magnifico quanto à narração de Alencar sobre a seca no sertão, é quando este período chega ao fim dando lugar à diversidade da vida novamente e a forma como ele narra e constrói uma imagem de um sertão fecundo onde basta uma primeira chuva, para a vida começar a brotar quase que de forma magica, ”que prodígios ostenta a força criadora desta terra depois de sua longa incubação! Dela pode se dizer sem tropo que vê-se rebentar do solo o grêlo e crescer, assistindo-se ao trabalho da germinação como a um processo da indústria humana.” e acrescenta como toda forma de vida retornava ao sertão: “Não eram somente as matas, os silvaçais e as várzeas [...] o espaço, até ali mudo e ermo [...] começava por igual a povoar-se dos pássaros, que durante a seca se refugiam nas serras e emigram para climas amenos. Já se ouviam grazinar as maracanãs entre os leques sussurrantes da carnaúba e repercutirem os gritos compassados do cancã, saltando pela relva. O primeiro casal de marrecas, naquele instante chegado das margens de Parnaguá, a centenas de léguas, banhava-se nas águas de um alagado produzido pela chuva.”

E esse processo de transformação que ocorre no sertão foi narrada por Alencar durante inúmeros capítulos, mitificando a valentia da vida como uma obra mística e divina que dia após dia ia transformando-se de deserto em uma floresta, que a “cada manhã de novas galas ainda mais brilhantes do que as da véspera. [...] A terra, que adormecia com o fechar da noite, já não era a mesma que despertava ao raiar do sol. Como se a houvesse tocado o condão de uma fada, ela transformava-se por encanto: e mostrava-se tão louçã e donosa que parecia ter desabrochado naquele instante, como uma flor do seio da criação. [...] A gentil feiticeira dos nossos sertões é a linfa, que, descendo do céu nos orvalhos da noite e nas chuvas copiosas do inverno, semeia os campos de todas as maravilhas da vegetação.”

Após aquele tempo, até os dias de hoje, o sertão continua inóspito durante longos períodos do ano, se agravando ainda mais em períodos de anos em que a seca atravessa por um tempo maior, no próprio romance Alencar cita sobre um desses períodos de uma longa seca: “Antes da grande seca de 1793, foi tal a abundância do gado selvagem em todo o sertão do norte que, [...], entrava nas obrigações do vaqueiro a tarefa de extingui-lo, para não desencaminhar as boiadas mansas, que andavam soltas pelos pastos”.

O Sertanejo é uma obra escrita por um mestre no oficio de escrever e imaginar, sem dúvida, essa e suas demais obras será lida por inúmeras gerações ainda, não por negligencia, mas por opção, esse texto não adentrou no tema principal da obra, que era o sertanejo, poderíamos discorrer com uma abrangência grande sobre seu romance, em detalhes como modo de vida do sertanejo, cavalgada, vaquejada, culinária, tarefas, lazeres, matrimônios, hierarquia e submissão das famílias e empregados, fé divina, conflitos armados, moradia, vida no campo, etc. Tudo isso foi aprofundado de forma detalhada, que leva o leitor á obter uma grande abrangência do conhecimento sobre o Brasil da época. Entretanto, esse texto focou em apresentar a narração do autor no que tange a geografia do solo no sertão, ficando para outra oportunidade aprofundar mais nos conhecimentos proporcionados por essa magnifica leitura.

No século seguinte, inúmeros outros autores consagrados de nossa literatura utilizaram-se do sertão para construir suas obras, Raquel de Queiroz, com o livro O Quinze (1930), narra a seca histórica do ano de 1915, Euclides da Cunha, com o livro Os Sertões (1902), Graciliano Ramos, com o livro Vidas Secas (1938), José Guimarães Rosa, com o livro Grande Sertão: Veredas (1956) são nomes que após José de Alencar também produziram obras consagradas ambientadas no Nordeste brasileiro.


“Saudades que me deixaste,
Saudades me levarão.
Aonde foram-se os olhos,
Vai após meu coração.”

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Ilustração de Manuel Huete Aguilar, 1965
(o desenhista espanhol ilustrou toda 5ª edição do livro, e essa foi escolhida para capa da edição.)

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